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19/08/2011

Resenha do filme "O Julgamento de Nuremberg"

O JULGAMENTO de Nuremberg. Dir.: Yves Simoneau. Canadá/EUA: Warner Home Video, 2000. Filme (169 min.), dub.





“Poderia haver uma sujidade, uma impudência de qualquer natureza na vida cultural da nação em que, pelo menos um judeu, não estivesse envolvido? Quem, cautelosamente, abrisse o tumor haveria de encontrar, protegido contra as surpresas da luz, algum judeuzinho. Isso é tão fatal como a existência de vermes nos corpos putrefatos.” (Adolf Hitler – Mein Kampf[1])

É com esta frase que Hitler expressa todo o seu judenhass, ou seja, seu ódio aos judeus. É nesta frase que conseguimos compreender a que ponto chega a loucura de um homem, comparando humanos com vermes, e tendo a certeza de que o mais correto a se fazer seria exterminá-los. É com esta frase que inicio uma análise da obra cinematográfica “O Julgamento de Nuremberg”, do diretor Yves Simoneau.
A história da obra se passa logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e relata o ponto de vista do Juiz Associado da Suprema Corte norte-americana Robert Jackson, chefe da promotoria responsável em realizar a acusação do alto escalão nazista, subordinado a Hitler. O filme conta-nos detalhes sobre os bastidores da Alemanha pós-guerra, bem como o que ocorreu nas coxias do teatro montado em Nuremberg, para o grande ato do Tribunal Militar Internacional.
O estopim da segunda guerra mundial pode ser definido como um conjunto gigantesco de situações sui generis que desencadeou uma avalanche de medos e reações de proporções até hoje surpreendentes[2]. Mas, de todos os aspectos deste triste evento os crimes contra os direitos humanos cometidos pelo Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores) são o retrato mais fiel do poder destrutivo do ser humano contra seus iguais.
A crueldade do Holocausto, nome dado ao extermínio das milhões de pessoas que faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime nazista, é tamanha que não pode ser analisada de forma imparcial (este fato pode ser verificado em relatos e imagens apresentados durante a obra em estudo). O que se iniciou com uma repressão econômica baseada no antissemitismo transformou-se em uma cruel, covarde e nefasta limpeza étnica. A ideologia nazista encabeçada por Hitler era, do ponto de vista econômico, puramente expansionista, mas o führer ocultava ideais perversos e subversivos. Os estudos históricos e até mesmo o aprofundamento temático nunca se aproximará da experiência de quem conseguiu sobreviver à maior carnificina humana do século XX.
É angustiante pensar no sofrimento de um povo que outrora foi tratado como “ratos”, como assim os denominavam os nazistas, sendo exterminados aos montes, sentindo na pele não somente a dor física da fome, do frio e das feridas, mas, a dor imensurável e inesquecível de ver tolhidos todos os seus direitos mais básicos e fundamentais, de ver extirpadas suas honras e seus méritos, de ver ser fulminada sem piedade uma parcela de seu povo.
A teoria racial criada por Alfred Rosemberg, Ministro de Hitler, expressava ser o povo germânico um descendente superior dos povos nórdicos, e, portanto, como evento natural deveria a raça ariana germânica sobrepujar as demais. A política racial nazista, fulcrada neste viés, constituiu-se em sua totalidade na supremacia da raça branca, no nacionalismo extremista alemão e no perverso antissemitismo. Hitler cria piamente nos seus ideais, disse ele “Onde Napoleão falhou, obterei sucesso, vou desembarcar nas praias da Inglaterra” e Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, é tido como o autor da frase “Este homem é perigoso - ele acredita no que diz”.
O julgamento dos líderes nazistas ocorrido em Nuremberg, na Alemanha, trouxe à tona a importância do devido processo legal na construção de uma sociedade democrática e justa (ideia abertamente expressada no filme em estudo). O interesse quase unânime dos aliados, de se punir com justiça os responsáveis por tanto horror, cristalizou-se no mundo jurídico como prova de que a lex talionis não mais era socialmente cabível no seio da moderna sociedade. O que se almejou naquele tribunal foi dar ao mundo uma das maiores amostras de justiça que se podia oferecer, deixando um legado imenso para o Direito moderno.
Hitler disse certa vez que “Só lutamos por aquilo que amamos, só amamos aquilo que respeitamos e só respeitamos aquilo que conhecemos”, mas, nestas palavras percebemos uma paradoxal ironia, pois, o amor é um sentimento que compreende a aceitação e a solidariedade, restando impossível a um genocida amar algo ou alguém. Sun Tzu, mestre-filósofo e general chinês, eternizou-se com a máxima “O verdadeiro objetivo da guerra é a paz”, contudo para Hitler e todo sistema nazista, a guerra tinha dois objetivos inescrupulosos: alçar a Alemanha ao status de Estado superior e subjugar as demais raças em prol da ariana, nunca pensando em paz[3].
Pensar em direitos humanos é refletir sobre algo superior que concede ao ser humano a capacidade de ser ao mesmo tempo justo e solidário. Partindo de uma visão racionalista podemos afirmar que o homem é por natureza livre e possui direitos naturais que nascem consigo e não podem ser desconsiderados pela sociedade na qual vive. Quando pensamos em algo superior, independentemente se posicionados a favor da razão (racionalismo) ou da fé (naturalismo), concluímos que o homem não pode desprezar algo que é o alicerce da vida em sociedade, posto que sem os fundamentos dos diretos humanos não há espaço para o Estado de Direito, restando a ditadura e o despotismo e tendo a guerra como consequência.
O nazismo conseguiu perpetuar na história, como dito por Flávia Piovesan[4], cenas de “destruição e descartabilidade da pessoa humana”, mas, nem por isso os seus idealizadores e realizadores foram sumariamente eliminados como suas vítimas. “O Julgamento de Nuremberg” consegue expressar bem este enfoque que, sem sombra de dúvidas, é o mais importante de toda a história, posto que o ideal de justiça ali suscitado é a expressão mais clara dos direitos humanos.
Noberto Bobbio, citado por Piovesan, leciona que “os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas”[5], isto fica claro quando analisamos a trajetória dos direitos humanos fundamentais e a luta de seus defensores para que hodiernamente pudéssemos gritar aos quatro ventos que somos mais livres e mais felizes que antes. Embora tais direitos nasçam com o ser humano, infelizmente temos que lutar para que se concretizem e se perpetuem.
Todas as atrocidades ocorridas durante o Holocausto, e também reveladas pela obra ora em estudo, demonstram que facilmente o ser humano pode ser influenciado a cometer barbáries em nome de um ideal, de um dogma ou de um mito. Hitler sabia disso e disse “A grandeza de toda poderosa organização incorporando uma ideia neste mundo repousa no fanatismo religioso e na intolerância com a qual fanaticamente se convencem de seus direitos, impondo com intolerância contra todas as outras”.
O julgamento de Nuremberg” demonstra o quão alienados estavam os seguidores de Hitler, quando por vários momentos demonstraram uma fervorosa paixão pelo ideal nazista, mesmo sendo algo tão nefasto. A frieza com a qual alguns relatavam os horrores cometidos é de dar calafrios, e ainda assim, mesmo havendo controvérsias[6], a justiça foi feita como deveria ser.
A obra cinematográfica “O julgamento de Nuremberg” traz uma ótica “americanizada” de se analisar os acontecimentos pós-guerra. Fato que, a princípio, distrai o espectador quanto ao tema da obra, logicamente, o desenrolar do julgamento dos 21 líderes nazistas ocorrido na destruída cidade de Nuremberg. A visão romântica introduzida no roteiro americano ameniza o impacto factual e enevoa a ótica dos que desconhecem toda história. A alternação entre história e estória pode confundir a construção intelectual dos espectadores quanto ao assunto, sendo que melhor seria uma abordagem menos dramática, o que, porém, catalogaria o filme como um documentário, o que não resultaria em lucro, objetivo da indústria cinematográfica. Contudo trata-se de uma obra-prima, que relata com precisão os tensos momentos ocorridos durante o julgamento de Hermann Göring e companhia.


[1] Mein Kampf (Minha Luta) é o título da obra escrita por Adolf Hitler na qual expressa suas opiniões antissemitas entre outras aberrações.
[2] A história nos mostra que foram necessários vários fatores até que fosse declarada a Segunda Guerra Mundial. Não se tratou de uma situação isolada e, sim, de um complexo caos causado não só pelos alemães, mas, também por japoneses e italianos.
[3] “Na guerra eterna a humanidade se torna grande - na paz eterna, a humanidade se arruinaria” (Adolf Hitler).
[4] PIOVESAN, Flavia. Direitos sociais, econômicos e culturais e direitos civis e políticos. Sur. Rev. Int. Direitos Humanos. [online]. 2004, vol.1, n.1 ISSN 1806-6445. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S1806-64452004000100003&script=sci_arttext. Acesso em 31/07/2011.
[5] PIOVESAN, Flavia. Op. Cit.
[6] Há historiadores que afirmam que os enforcamentos dos declarados culpados em Nuremberg foram realizados de forma a causar grande sofrimento aos enforcados, não os matando instantaneamente.