Pesquise se in dubio

19/08/2011

Resenha do filme "O Julgamento de Nuremberg"

O JULGAMENTO de Nuremberg. Dir.: Yves Simoneau. Canadá/EUA: Warner Home Video, 2000. Filme (169 min.), dub.





“Poderia haver uma sujidade, uma impudência de qualquer natureza na vida cultural da nação em que, pelo menos um judeu, não estivesse envolvido? Quem, cautelosamente, abrisse o tumor haveria de encontrar, protegido contra as surpresas da luz, algum judeuzinho. Isso é tão fatal como a existência de vermes nos corpos putrefatos.” (Adolf Hitler – Mein Kampf[1])

É com esta frase que Hitler expressa todo o seu judenhass, ou seja, seu ódio aos judeus. É nesta frase que conseguimos compreender a que ponto chega a loucura de um homem, comparando humanos com vermes, e tendo a certeza de que o mais correto a se fazer seria exterminá-los. É com esta frase que inicio uma análise da obra cinematográfica “O Julgamento de Nuremberg”, do diretor Yves Simoneau.
A história da obra se passa logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e relata o ponto de vista do Juiz Associado da Suprema Corte norte-americana Robert Jackson, chefe da promotoria responsável em realizar a acusação do alto escalão nazista, subordinado a Hitler. O filme conta-nos detalhes sobre os bastidores da Alemanha pós-guerra, bem como o que ocorreu nas coxias do teatro montado em Nuremberg, para o grande ato do Tribunal Militar Internacional.
O estopim da segunda guerra mundial pode ser definido como um conjunto gigantesco de situações sui generis que desencadeou uma avalanche de medos e reações de proporções até hoje surpreendentes[2]. Mas, de todos os aspectos deste triste evento os crimes contra os direitos humanos cometidos pelo Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores) são o retrato mais fiel do poder destrutivo do ser humano contra seus iguais.
A crueldade do Holocausto, nome dado ao extermínio das milhões de pessoas que faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime nazista, é tamanha que não pode ser analisada de forma imparcial (este fato pode ser verificado em relatos e imagens apresentados durante a obra em estudo). O que se iniciou com uma repressão econômica baseada no antissemitismo transformou-se em uma cruel, covarde e nefasta limpeza étnica. A ideologia nazista encabeçada por Hitler era, do ponto de vista econômico, puramente expansionista, mas o führer ocultava ideais perversos e subversivos. Os estudos históricos e até mesmo o aprofundamento temático nunca se aproximará da experiência de quem conseguiu sobreviver à maior carnificina humana do século XX.
É angustiante pensar no sofrimento de um povo que outrora foi tratado como “ratos”, como assim os denominavam os nazistas, sendo exterminados aos montes, sentindo na pele não somente a dor física da fome, do frio e das feridas, mas, a dor imensurável e inesquecível de ver tolhidos todos os seus direitos mais básicos e fundamentais, de ver extirpadas suas honras e seus méritos, de ver ser fulminada sem piedade uma parcela de seu povo.
A teoria racial criada por Alfred Rosemberg, Ministro de Hitler, expressava ser o povo germânico um descendente superior dos povos nórdicos, e, portanto, como evento natural deveria a raça ariana germânica sobrepujar as demais. A política racial nazista, fulcrada neste viés, constituiu-se em sua totalidade na supremacia da raça branca, no nacionalismo extremista alemão e no perverso antissemitismo. Hitler cria piamente nos seus ideais, disse ele “Onde Napoleão falhou, obterei sucesso, vou desembarcar nas praias da Inglaterra” e Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, é tido como o autor da frase “Este homem é perigoso - ele acredita no que diz”.
O julgamento dos líderes nazistas ocorrido em Nuremberg, na Alemanha, trouxe à tona a importância do devido processo legal na construção de uma sociedade democrática e justa (ideia abertamente expressada no filme em estudo). O interesse quase unânime dos aliados, de se punir com justiça os responsáveis por tanto horror, cristalizou-se no mundo jurídico como prova de que a lex talionis não mais era socialmente cabível no seio da moderna sociedade. O que se almejou naquele tribunal foi dar ao mundo uma das maiores amostras de justiça que se podia oferecer, deixando um legado imenso para o Direito moderno.
Hitler disse certa vez que “Só lutamos por aquilo que amamos, só amamos aquilo que respeitamos e só respeitamos aquilo que conhecemos”, mas, nestas palavras percebemos uma paradoxal ironia, pois, o amor é um sentimento que compreende a aceitação e a solidariedade, restando impossível a um genocida amar algo ou alguém. Sun Tzu, mestre-filósofo e general chinês, eternizou-se com a máxima “O verdadeiro objetivo da guerra é a paz”, contudo para Hitler e todo sistema nazista, a guerra tinha dois objetivos inescrupulosos: alçar a Alemanha ao status de Estado superior e subjugar as demais raças em prol da ariana, nunca pensando em paz[3].
Pensar em direitos humanos é refletir sobre algo superior que concede ao ser humano a capacidade de ser ao mesmo tempo justo e solidário. Partindo de uma visão racionalista podemos afirmar que o homem é por natureza livre e possui direitos naturais que nascem consigo e não podem ser desconsiderados pela sociedade na qual vive. Quando pensamos em algo superior, independentemente se posicionados a favor da razão (racionalismo) ou da fé (naturalismo), concluímos que o homem não pode desprezar algo que é o alicerce da vida em sociedade, posto que sem os fundamentos dos diretos humanos não há espaço para o Estado de Direito, restando a ditadura e o despotismo e tendo a guerra como consequência.
O nazismo conseguiu perpetuar na história, como dito por Flávia Piovesan[4], cenas de “destruição e descartabilidade da pessoa humana”, mas, nem por isso os seus idealizadores e realizadores foram sumariamente eliminados como suas vítimas. “O Julgamento de Nuremberg” consegue expressar bem este enfoque que, sem sombra de dúvidas, é o mais importante de toda a história, posto que o ideal de justiça ali suscitado é a expressão mais clara dos direitos humanos.
Noberto Bobbio, citado por Piovesan, leciona que “os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas”[5], isto fica claro quando analisamos a trajetória dos direitos humanos fundamentais e a luta de seus defensores para que hodiernamente pudéssemos gritar aos quatro ventos que somos mais livres e mais felizes que antes. Embora tais direitos nasçam com o ser humano, infelizmente temos que lutar para que se concretizem e se perpetuem.
Todas as atrocidades ocorridas durante o Holocausto, e também reveladas pela obra ora em estudo, demonstram que facilmente o ser humano pode ser influenciado a cometer barbáries em nome de um ideal, de um dogma ou de um mito. Hitler sabia disso e disse “A grandeza de toda poderosa organização incorporando uma ideia neste mundo repousa no fanatismo religioso e na intolerância com a qual fanaticamente se convencem de seus direitos, impondo com intolerância contra todas as outras”.
O julgamento de Nuremberg” demonstra o quão alienados estavam os seguidores de Hitler, quando por vários momentos demonstraram uma fervorosa paixão pelo ideal nazista, mesmo sendo algo tão nefasto. A frieza com a qual alguns relatavam os horrores cometidos é de dar calafrios, e ainda assim, mesmo havendo controvérsias[6], a justiça foi feita como deveria ser.
A obra cinematográfica “O julgamento de Nuremberg” traz uma ótica “americanizada” de se analisar os acontecimentos pós-guerra. Fato que, a princípio, distrai o espectador quanto ao tema da obra, logicamente, o desenrolar do julgamento dos 21 líderes nazistas ocorrido na destruída cidade de Nuremberg. A visão romântica introduzida no roteiro americano ameniza o impacto factual e enevoa a ótica dos que desconhecem toda história. A alternação entre história e estória pode confundir a construção intelectual dos espectadores quanto ao assunto, sendo que melhor seria uma abordagem menos dramática, o que, porém, catalogaria o filme como um documentário, o que não resultaria em lucro, objetivo da indústria cinematográfica. Contudo trata-se de uma obra-prima, que relata com precisão os tensos momentos ocorridos durante o julgamento de Hermann Göring e companhia.


[1] Mein Kampf (Minha Luta) é o título da obra escrita por Adolf Hitler na qual expressa suas opiniões antissemitas entre outras aberrações.
[2] A história nos mostra que foram necessários vários fatores até que fosse declarada a Segunda Guerra Mundial. Não se tratou de uma situação isolada e, sim, de um complexo caos causado não só pelos alemães, mas, também por japoneses e italianos.
[3] “Na guerra eterna a humanidade se torna grande - na paz eterna, a humanidade se arruinaria” (Adolf Hitler).
[4] PIOVESAN, Flavia. Direitos sociais, econômicos e culturais e direitos civis e políticos. Sur. Rev. Int. Direitos Humanos. [online]. 2004, vol.1, n.1 ISSN 1806-6445. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S1806-64452004000100003&script=sci_arttext. Acesso em 31/07/2011.
[5] PIOVESAN, Flavia. Op. Cit.
[6] Há historiadores que afirmam que os enforcamentos dos declarados culpados em Nuremberg foram realizados de forma a causar grande sofrimento aos enforcados, não os matando instantaneamente.



12/04/2010

Resenha crítica da obra "O Processo" de Franz Kafka

O Advogado, boêmio, Franz Kafka é uma figura única na literatura mundial. Kafka nasceu em Praga, hoje capital da República Tcheca, em 03 de Julho de 1883 e cresceu sob a influência das culturas judaica, tcheca e alemã. Como já dito foi advogado, mas, a vida jurídica o frustrou profundamente, fazendo-o desistir da carreira e ir trabalhar em outros ramos. Pode-se dizer que foi um homem sofrido, até mais, amargurado, e grande parte dessa amargura deve-se a seu pai, Hermann Kafka, comerciante judeu que é considerado, inclusive, por Franz Kafka em seu livro Carta ao Pai, um tirano, autoritário e egoísta, que, também, o impediu de casar com sua amada, Julie.

A vida de Franz não foi fúlgida, tampouco plácida; Sua infância e adolescência foram marcadas pela tirania de seu pai o que, data vênia, entendo que foi o que lapidou as suas características mais marcantes: a simbologia, o absurdo e a acidez usada em seus escritos. Devemos ter por fundamento balizador ao analisar as obras de Kafka o fato de que toda sua obra é consequência de sua relação com seu pai. Todo seu sofrimento está misturado às suas palavras de forma homogênea.

Na obra “O Processo” Kafka descreve uma narrativa cheia mistério, fazendo com que o leitor mergulhe em um contexto que parece fugir da racionalidade e lógica, que é uma das características mais marcantes de suas obras. Nesta obra ele relata a história de Josef K., bancário que ao acordar no dia de seu aniversário de 30 anos se vê detido por pessoas que não conhece, a fim de responder um processo judicial do qual não sabe o motivo, movido por uma justiça ilógica, corrupta e burocrática. Embora detido, fica autorizado a viver sua vida normalmente, exercendo suas atividades diárias como se nada estivesse acontecendo, somente tendo que comparecer esporadicamente a um Tribunal que chega a ser onírico de tão inconcebível. Balizo-me nas palavras de Luiz Costa Lima:

Se, ao invés, de tudo se põe em questão, a fonte questionadora mesma se torna socialmente intolerável, porque tudo se desestabiliza. Mas é exatamente isso o que faz Kafka. Com ele, o objeto ficcional não permite o alívio de dizer-se: que bom, afinal o mundo não é assim; ao menos, não é só isso. Ou em termos concretos: afinal, fora d’O Processo as leis continuam a ser respeitadas e a polícia não pode bater à minha porta na hora que bem entenda. N’O Processo a ficção básica é a do Estado de Direito. (LIMA C. L., Limites da Voz – KAFKA. RJ: Rocco, 1993, p.163).

Nesse fantástico e irritante (sim, de tão absurdo irrita e apaixona) cenário kafkiano o leitor não pode se deixar levar singelamente pelas aparências, pois, sempre que quer relatar o coerente Kafka utiliza-se do absurdo, e sempre que quer narrar o impensável fala de maneira lógica, confundindo. Além de que nada é o que mais simples possa ser, haja vista que será sempre algo inerente à sua vivência e seu sofrimento, sendo intrínseco aos seus sentimentos mais profundos. É neste ponto que entendo que está a grande qualidade de Kafka, a capacidade de poder sentir o anseio social e entrelaçá-lo com as mais absurdas situações, justificando-os.

O julgamento de Josef K prossegue sem que ele sequer tenha meios de indagar sobre tudo o que acontece, que o tolhe, de maneira que lhe resta suportar uma culpa que desconhece, observando a sua defesa ser desgastada aos poucos, embora lhe seja inerente um resquício de uma mórbida esperança.

O próprio Kafka inicia sua obra supondo que “alguém deveria ter caluniado Josef K.”, minorando, desde o começo, as nossas possibilidades de entender o seu crime, pois, provavelmente tratava-se de uma calúnia, balizando-se na integridade moral da qual usufruía K. Sendo assim, como se defender de algo que se tem por brincadeira, ou que no máximo seja má fé, desconhecendo o crime, o acusador, as testemunhas, e todos os outros possíveis interessados no caso concreto? Tal fato demonstra a opinião de Kafka sobre a vida social que não perdoa os mais fracos e pertencentes a minorias, tolhendo-os os direitos, mesmo que numa invisível cela, conhecida eufemisticamente por prisão social.

Durante seu processo alguns se manifestam a favor de Josef, mas, são gritos vãos, como os de alguns que estavam no tribunal de acareação que inutilmente bradam “Bravo!”, sem sucesso. Estes são os que estão do nosso lado sem, contudo, alcançar êxito em sua tentativa de auxílio, pois são fracos, menores, não combatendo aqueles que detêm o poder. Outro ponto de máxima crítica de Kafka ocorre no capítulo V, O Açoitador, no qual narra o açoitamento de alguns rapazes que, subjugados, nada podem fazer para defender-se, em uma descarada censura ao abuso de autoridade de muitos que à época detinham (outros, hoje, detém) tal poder.

Nas idas e vindas de Josef durante sua via crucis ele se depara com algumas mulheres as quais sempre lhe atraem e são atraídas, como a senhorita Bürstner, a mulher do porteiro do tribunal e Leni (a enfermeira), as quais o fazem pensar “Estou conseguindo ajuda por parte das mulheres” (KAFKA, p. 78) o que no meu ver revela uma fundada preocupação por parte de Kafka em mencionar os casos amorosos de seu personagem. Ora em meio a tanta turbulência o que unicamente distraia Josef eram as mulheres, para Kafka, talvez uma alusão ao seu amor juvenil, quase mitigado por seu pai, mas, para Josef é um meio de não perder a lucidez, manter-se vivo, envolvido socialmente, não emudecer perante o que o processo lhe ofusca.

Em determinado ponto de sua obra Kafka menciona a preocupação de Josef ao ouvir do pintor Titorelli que provavelmente era inocente, pois, já lhe pesava tal possibilidade e o seu inverso. Pensar nisso deixava Josef inquieto (KAFKA, p. 108). É ofuscante ao homem ter de conviver com a dúvida, ainda mais aquela emanada da incerteza que se pode ter para com a justiça. Kafka ressalta bem isso em toda sua obra ao questionar direta e indiretamente o leitor ‘onde está a justiça’: “Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal que ele nunca alcançara? Levantou a mão e estendeu os dedos.” (KAFKA, p. 163). Nota-se uma grande revolta demonstrada nas palavras de Kafka, ao erguer sua mão aos céus procurando algo em que se salvar, buscando em vão tecer conclusões de o que ocorreu de errado, de onde está seu algoz. Ou seja, tendo suas forças diminuídas o homem simples não tem, sequer, a chance de ser reconhecido como socialmente ativo, politicamente funcional, inteligentemente questionável. São-lhe tolhidas, discretamente, pela sociedade, suas funções sociais mais banais, tais como o direito a voz ativa.

Kafka faz duras críticas ao sistema judicial de forma descarada, fundando-as em sua experiência jurídica e num mundo estranho, complexo, onde a desilusão de um homem com a justiça faz-lhe deixar-se levar ao matadouro, comparando-se a um cão, morrendo envergonhado por algo que desconhecia. É fácil concordar com Kafka ao analisarmos a nossa atual morosidade jurídica onde se mensura o tempo processual em anos, quiçá, décadas. Não obstante não se deve tomar toda sua obra por idêntica à realidade, pois, seria de grande injustiça com os que promovem a celeridade judicial.

Entendo que Kafka era ao mesmo tempo brilhante e pessimista (sim, pessimista no sentido de amargurado, desestimulado); Suas palavras levam o leitor a ver o mundo de maneira mais precavida, a famosa visão kafkiana.

Voltando nossos olhos para uma análise mais profunda da obra ‘O Processo’ podemos notar uma característica principal que emana como perfume de cada palavra usada por Kafka, qual seja sua repugnância ante a desintegração da personalidade humana ante o totalitarismo e impessoalismo estatal, que com sua burocracia, autoritarismo, ditatorialismo, ou mesmo desprezo, o faz com certa facilidade, quase naturalmente. Além, claro, da corrupção instaurada e impregnada no meio:

“(...) não há dúvida nenhuma de que por detrás de todas as aparências desta justiça e, no meu caso, para lá da prisão e do interrogatório de hoje, se encontra uma grande organização. Uma organização que não utiliza unicamente guardas venais, inspetores e juízes de instrução idiotas, indigitados apenas para o mais simples dos casos, mas que também sustenta juízes de elevada categoria, servidos por inúmeros e inevitáveis criados, escribas, polícias e outros auxiliares, talvez mesmo carrascos, emprego esta palavra sem qualquer receio. E, meus senhores, qual é o sentido desta grande organização? Não é outro senão o de prender pessoas inocentes e de contra elas instruir um processo absurdo e, na maior parte das vezes, como no meu caso, improfícuo. Como é que numa conjuntura tão absurda se pode evitar que os funcionários fiquem corruptos? E impossível; nem sequer o mais eminente juiz conseguiria escapar à ação dissolvente do meio. É por isso que os guardas procuram roubar as roupas aos presos, é por isso que os inspetores se introduzem abusivamente nas casas de cada um, é por isso que se prefere aviltar os inocentes em frente de assembléias inteiras a interrogá-los. Os guardas não falaram senão em depósitos para os quais se levam os bens dos presos. Gostaria bastante de ver esses depósitos onde os haveres que os presos adquiriram à força de tanto trabalho apodrecem, caso não sejam roubados por funcionários sem escrúpulos.” (KAFKA, p. 35) [grifo nosso].

Em segundo plano, o seu desconforto para com a sociedade que no seu ver é, na sua maioria, formada de pessoas sem humanidade, sem altruísmo. Vivem suas vidas mecanicamente sem se importar com a dor alheia e, sim, sempre rotulando e estereotipando. Em várias passagens de sua obra vemos que o fato de o personagem Josef estar sendo processado é motivo para receio, palavras repensadas, por parte de seus interlocutores. O fato de ele ser um possível condenado assombra a muitos. Difícil não comparar com a realidade, onde aqueles que sofrem o peso da lei e o furor do Estado, após tanto, não usufruem da mesma dignidade de outrora, pelo contrário, ex-detentos e até mesmo os que não chegaram a ser condenados, mas que por motivo de publicidade sofreram grande dano moral, nunca mais em suas vidas terão seus “nomes limpos”, haja vista o mal que ronda a sociedade moderna que não perdoa os seus que, por motivos vários, distorcem-se da retidão.

Outro aspecto secundário, contudo não menos importante, é a mistificada prisão civil bem retratada por Kafka em sua obra. A prisão civil kafkiana é mais ou menos o ingrediente que dá um toque de suspense às suas obras, são aqueles momentos nos quais seus personagens se vêem tolhidos de direitos subjetivos meramente por suas consciências. Em vários momentos da obra “O Processo” Josef se depara com situações que necessitariam de uma atitude menos cautelosa ou mais impetuosa, porém, acaba agindo de forma indolente, apática, preguiçosa, tudo por causa de sua consciência “ferida” além da dor de não conseguir estabelecer qual a sua culpa real. Trata-se de um jogo psicológico que vai definhando Josef, até que suas forças já nem podem ser mais mensuradas, e deixa-se matar, sem lutar e sem saber o porquê, nem por quem. Culpado por desconhecer seu crime. Ou seja, do princípio ao fim Josef comporta-se como se culpado fosse, argüindo quem o acusa e não a causa, pois, a posição em que se encontra, acusado, começa a lhe remover a lucidez, então lhe parece mais lógico saber quem é o acusador para então entender o seu crime. Um homem não vive sem a justificação de seus atos, se esta não existe procura-se o Estado e se este se esconde perde-se o chão, assim, não se pode entender a causa de tanta angústia, como no caso de Josef. Essa invisibilidade estatal é chamada de “incomunicabilidade”: o homem abaixo e o Estado (autoridade) acima e inalcançável.

A obra “O Processo” é inesgotável em sua análise, aqui me atenho a algumas das que mais me impressionaram, trata-se de uma obra que não perde sua contemporaneidade, sendo moderníssima mesmo hoje. As críticas de Kafka, embora oníricas, são bastante incisivas, vindo a se paralelizar com muitas situações atuais. Na narração de Kafka o capelão que dialoga com Josef tenta explicar-lhe por uma parábola os caminhos da Lei:

“Diante da Lei, fica um guarda. Um homem, vindo do interior, pede para entrar. Mas o guarda não admite. ‘- Pode ele entrar mais tarde?’. ‘-É possível’, diz o guarda. O homem tenta olhar para dentro. Aprendeu que a Lei deveria ser acessível a todos. ‘-Não tente entrar sem a minha permissão! Eu sou poderoso! E sou apenas o mais subalterno de todos os guardas! A cada sala, a cada porta, há um guarda mais poderoso que o anterior’. Com a permissão do guarda ele senta ao lado da porta e espera. Por anos ele espera. Ele vende tudo o que tem pensando subornar o guarda. Este sempre aceita o que o homem lhe dá para que ele não sinta que não tentou. Fazendo vigília por anos, o homem conhece até as pulgas da gola do guarda. Ficando gagá com a idade, pede às pulgas que convençam o guarda a permitir a entrada. Sua visão é curta, mas ele percebe um brilho infinito ao redor da porta da lei. E agora, antes de morrer, toda sua experiência se reduz a uma pergunta que ele nunca fez. Ele chama o guarda. E o guarda responde: ‘-Você não se cansa, o que quer agora?’ ‘- Todo homem luta pela Lei’. Então, por que nesses anos todos ninguém pediu a proteção da Lei?’ Sua audição não é boa, e o guarda grita em seu ouvido: ‘-Só você poderia entrar. Ninguém mais. Essa porta foi feita só para você. E, agora, eu vou fechá-la’. (KAFKA, p. 152)

Ora, o homem simples não prevê as complicações da Lei, tem-se por verdade absoluta que ela existe para nos ajudar, para tanto deve ser de fácil entendimento. O que ocorre largamente atualmente é a falta de informação jurídica para a maioria (“homens simples”), o que acarreta vasta injustiça. O porteiro não eternizou a impossibilidade de o homem do campo entrar à Lei, mas, naquele momento o impediu, a má interpretação do dito o fez esperar por toda sua vida a chance de conhecer a Lei.

Kafka deixa-nos uma obra-prima, não só pela qualidade única de sua técnica, mas, também pela maravilhosa gama de possibilidades de análises de seu mundo. “O Processo” é tempestivo, atual, entendo que mais, eterno. Embora sua leitura seja de certo modo inquietante, o leitor desfruta de uma obra caracterizada pelo absurdo, que o leva à ira com o personagem, mas, à reflexão com o contexto. Como já dito supra “O Processo” faz o leitor ficar mais alarmado para com a sociedade e o aparelho jurídico, não duvidando de seus fundamentos, advindos do pós-iluminismo, porém, do egocentrismo humano, do poder inebriante, pois, criação não se confunde com criador, se o sistema é falho lho é por causa do homem.

17/03/2010

Da atualidade da obra O Príncipe de Maquiavel

Na obra O Príncipe, Maquiavel tem como objetivo criar um “manual” para o bom governante, de modo a estabelecer meios para solução de possíveis conflitos, típicos da gestão governamental. Em toda a sua obra acharemos ensinamentos preciosos para os soberanos de sua época, contudo, tenho certeza que, mesmo hoje, sua obra continua ativa e atual.

Durante a leitura de “O Príncipe” percebemos que Maquiavel inicia-a nos dando conceitos básicos para continuidade da leitura e segue por vários capítulos ensinando sobre os tipos constituídos de Estado, dos governantes e os métodos utilizados em suas administrações e da relação entre aqueles e povo. Após isso discorre sobre a conduta pessoal do príncipe, explicando que ele deverá, dependendo da situação, ser bruto, mas com moderação, ser temido, mas sem exagerar na maldade, ostentar um pouco a sua riqueza, pois o povo gosta de ver, etc. Maquiavel faz algumas considerações complementares e finaliza a sua obra. 

O ideal maquiavélico consiste em se dizer que o “Os fins justificam os meios”, porém não do modo ruim com o qual entendemos esta frase, e sim, de modo a entender que para se governar bem é necessário fazer sacrifícios justificáveis, tais quais, a bondade pela dureza, a humildade pela ostentação etc., tudo isto para não perder o controle do governo. Fica clara a atual possibilidade de se utilizar os ensinamentos de Maquiavel, pois, hoje também é necessário as governantes deixarem de lado certos valores para que não sejam influenciáveis e imparciais.

Outro exemplo da atualidade desta obra está relacionado à necessidade de os atuais líderes terem a necessidade de estarem com pessoas capacitadas e fiéis ao seu lado, afastando-se dos bajuladores e priorizando “os bons soldados”. Não seria este o ideal de todo governante? O Príncipe trata-se de uma rica e preciosa obra literária que mesmo datada de séculos não perde seu valor por conter ensinamentos que nada perderam com o passar do tempo, mas, continuam muito atuais sendo característicos em todas as formas de governo atuais.

12/03/2010

Download Ilegal: Do crime à Inclusão cultural


Sentado à frente de seu computador, navegando por páginas das mais diversas, quem, na medida de sua experiência, já não baixou qualquer arquivo da Internet? O download ilegal cresce no Brasil e no mundo exponencialmente, assim, organizações de fiscalização e controle, enfurecidas, vão à caça de uns poucos menos sortudos e punem com multas às vezes exorbitantes. Uma empresa de pesquisa americana alega que, em pesquisa do ano de 2009, cerca de 8% dos internautas de vários países, em média, admitiram terem feito, em algum momento, download ilegal. Segundo relatório da mesma empresa "Essa ampla disponibilidade de conteúdo ilegal representa um grande obstáculo ao desenvolvimento de serviços de conteúdo on-line, e continua impactando pesadamente nas receitas, apesar das autoridades governamentais e da indústria repetirem tentativas de apertar o sistema". Parece ser majoritária a teoria de que o conjunto de downloads ilícitos só traz 'benefício' ao internauta, pois, para seu país, que deixa de arrecadar os tributos cabíveis, só tem a perder com isso, além do artista, no caso de músicas, filmes, clipes, dos autores, nos casos de livros, romances, etc, maiores prejudicados.

Só que a celeuma toda tem um grito mais forte que o dos outros: o das Gravadoras. São elas as principais militantes contra o download de músicas (principal alvo). Claro que não deixam de ter razão, porém, já foi posto que o valor cobrado por seus produtos mitiga a inclusão cultural das classes menos favorecidas. Há quem, diga como já lido por mim, “Quer um CD? Compre o original! Acha caro? NÃO COMPRE!!!”, o que eu acho completamente ignorante, simplista. Há tantos projetos culturais no nosso país os quais têm por escopo, justamente, a inclusão social e cultural de pessoas que não dispuseram de recursos para crescer em meio à diversidade cultural, por quê não um que incentive o bom uso da Internet?

A solução não está em multar e ou prender as pessoas que ‘’baixam’’ músicas, filmes, ou qualquer outro arquivo que deveria ser pago, mas, sim, incentivar o download PAGO por meio de campanhas governamentais de conscientização, sendo que aqueles deverão ter seu preço compatível com a realidade social do país em questão. Não obstante, o sucesso de tais campanhas, mesmo que mirabolantes, será ínfimo se o preço dos produtos já mencionados não condisserem com a realidade mencionada.

10/03/2010

Agora é Súmula, liberdade aos depositários infiéis judiciais.

Novidade no mundo das Leis! O STJ descartou a possibilidade de prisão civil dos depositários infiéis. A súmula 419 reza "Descabe a prisão civil do depositário judicial infiel". Sendo assim, aqueles que têm por obrigação guardar temporariamente coisa alheia, móvel, para restituí-la quando ordenado, porventura, desfazer-se dela, não obstante o modo pelo qual se deu o desfazimento, não mais poderão ser presos, como a pouco se podia.

Toda discussão gira em torno da supralegalidade ou não dos Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário. No caso específico, o Pacto de São José da Costa Rica, firmado em 1992, o qual determina em seu art. 7 , § 7º, que "ninguém deve ser detido por dívidas", batendo de frente com o texto da Carta Magna de 1988.

Para o Ministro Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento no sentido de que a incorporação do Pacto de São José da Costa Rica ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma supralegal restringiu a prisão civil por dívida ao descumprimento voluntário e inescusável de prestação alimentícia. “Com isso, concluiu aquela Corte Suprema que os tratados internacionais de direitos humanos que tratam da matéria derrogaram as normas infralegais autorizadoras da custódia do depositário infiel”, acrescentou.

Com a edição da súmula, basta a sua indicação pelo relator quando do julgamento de casos iguais.

MINHA OPINIÃO : Perfeito! A de se respeitar quem pensa que o depositário assume a responsabilidade sobre os bens, porém, PRENDER o sujeito por isso é de certa forma uma contradição. Existem outros meios a serem empregados na busca pela justiça que não a prisão.

Fonte: www.conjur.com.br


09/03/2010

Deixaram-me nascer... Uma analogia ao 124, CP.


Bem, meus caros amigos. Cá estou eu, sentado defronte à tela na qual vejo surgirem combinações de caracteres aos quais chamamos de letras, tendo o dever, assim como na medicina, de facilitar o nascimento de um recanto discursivo online.

Deixo-o nascer, sim, pois não serão aqui depositadas apenas minhas idéias, seria mera tirania, este espaço existe para que possamos estimular de forma harmonioza e gradual o crescimento ininteligível do conhecimento filosófico. Estrada suave e cujo fim não sabemos onde é.

Não sem dores, pois estas fazem-nos perceber o quão importante é dar a luz a idéias novas, discriminadas, marginais, quiçá faveladas (rotuladas), mas, importantes para nós. Nasce, então, este que, espero, cumpra fielmente seu objetivo.

Não obstante, reitero meu asco pelo descaso das autoridades brasileiras no que compete a grande quantidade de clínicas clandestinas de aborto, as quais vendem a morte, pelas mãos daqueles que desonram a graduação que lhes foi concedida. Abram os olhos, senhores, pois não sois a justiça, a qual pesará em sua balança o que lhe for pedido aqui, pelos homes, mas para onde acreditas que ireis após vosso último supiro? Pois é para lá que certamente irais.

Um grande abraço.

"É mais fácil suportar a morte sem pensar nela do que suportar o pensamento da morte sem morrer." (Blaise Pascal)