“Poderia haver uma sujidade, uma impudência de qualquer natureza na vida cultural da nação em que, pelo menos um judeu, não estivesse envolvido? Quem, cautelosamente, abrisse o tumor haveria de encontrar, protegido contra as surpresas da luz, algum judeuzinho. Isso é tão fatal como a existência de vermes nos corpos putrefatos.” (Adolf Hitler – Mein Kampf[1])
É com esta frase que Hitler expressa todo o seu judenhass, ou seja, seu ódio aos judeus. É nesta frase que conseguimos compreender a que ponto chega a loucura de um homem, comparando humanos com vermes, e tendo a certeza de que o mais correto a se fazer seria exterminá-los. É com esta frase que inicio uma análise da obra cinematográfica “O Julgamento de Nuremberg”, do diretor Yves Simoneau.
A história da obra se passa logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e relata o ponto de vista do Juiz Associado da Suprema Corte norte-americana Robert Jackson, chefe da promotoria responsável em realizar a acusação do alto escalão nazista, subordinado a Hitler. O filme conta-nos detalhes sobre os bastidores da Alemanha pós-guerra, bem como o que ocorreu nas coxias do teatro montado em Nuremberg, para o grande ato do Tribunal Militar Internacional.
O estopim da segunda guerra mundial pode ser definido como um conjunto gigantesco de situações sui generis que desencadeou uma avalanche de medos e reações de proporções até hoje surpreendentes[2]. Mas, de todos os aspectos deste triste evento os crimes contra os direitos humanos cometidos pelo Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei (Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores) são o retrato mais fiel do poder destrutivo do ser humano contra seus iguais.
A crueldade do Holocausto, nome dado ao extermínio das milhões de pessoas que faziam parte de grupos politicamente indesejados pelo então regime nazista, é tamanha que não pode ser analisada de forma imparcial (este fato pode ser verificado em relatos e imagens apresentados durante a obra em estudo). O que se iniciou com uma repressão econômica baseada no antissemitismo transformou-se em uma cruel, covarde e nefasta limpeza étnica. A ideologia nazista encabeçada por Hitler era, do ponto de vista econômico, puramente expansionista, mas o führer ocultava ideais perversos e subversivos. Os estudos históricos e até mesmo o aprofundamento temático nunca se aproximará da experiência de quem conseguiu sobreviver à maior carnificina humana do século XX.
É angustiante pensar no sofrimento de um povo que outrora foi tratado como “ratos”, como assim os denominavam os nazistas, sendo exterminados aos montes, sentindo na pele não somente a dor física da fome, do frio e das feridas, mas, a dor imensurável e inesquecível de ver tolhidos todos os seus direitos mais básicos e fundamentais, de ver extirpadas suas honras e seus méritos, de ver ser fulminada sem piedade uma parcela de seu povo.
A teoria racial criada por Alfred Rosemberg, Ministro de Hitler, expressava ser o povo germânico um descendente superior dos povos nórdicos, e, portanto, como evento natural deveria a raça ariana germânica sobrepujar as demais. A política racial nazista, fulcrada neste viés, constituiu-se em sua totalidade na supremacia da raça branca, no nacionalismo extremista alemão e no perverso antissemitismo. Hitler cria piamente nos seus ideais, disse ele “Onde Napoleão falhou, obterei sucesso, vou desembarcar nas praias da Inglaterra” e Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, é tido como o autor da frase “Este homem é perigoso - ele acredita no que diz”.
O julgamento dos líderes nazistas ocorrido em Nuremberg, na Alemanha, trouxe à tona a importância do devido processo legal na construção de uma sociedade democrática e justa (ideia abertamente expressada no filme em estudo). O interesse quase unânime dos aliados, de se punir com justiça os responsáveis por tanto horror, cristalizou-se no mundo jurídico como prova de que a lex talionis não mais era socialmente cabível no seio da moderna sociedade. O que se almejou naquele tribunal foi dar ao mundo uma das maiores amostras de justiça que se podia oferecer, deixando um legado imenso para o Direito moderno.
Hitler disse certa vez que “Só lutamos por aquilo que amamos, só amamos aquilo que respeitamos e só respeitamos aquilo que conhecemos”, mas, nestas palavras percebemos uma paradoxal ironia, pois, o amor é um sentimento que compreende a aceitação e a solidariedade, restando impossível a um genocida amar algo ou alguém. Sun Tzu, mestre-filósofo e general chinês, eternizou-se com a máxima “O verdadeiro objetivo da guerra é a paz”, contudo para Hitler e todo sistema nazista, a guerra tinha dois objetivos inescrupulosos: alçar a Alemanha ao status de Estado superior e subjugar as demais raças em prol da ariana, nunca pensando em paz[3].
Pensar em direitos humanos é refletir sobre algo superior que concede ao ser humano a capacidade de ser ao mesmo tempo justo e solidário. Partindo de uma visão racionalista podemos afirmar que o homem é por natureza livre e possui direitos naturais que nascem consigo e não podem ser desconsiderados pela sociedade na qual vive. Quando pensamos em algo superior, independentemente se posicionados a favor da razão (racionalismo) ou da fé (naturalismo), concluímos que o homem não pode desprezar algo que é o alicerce da vida em sociedade, posto que sem os fundamentos dos diretos humanos não há espaço para o Estado de Direito, restando a ditadura e o despotismo e tendo a guerra como consequência.
O nazismo conseguiu perpetuar na história, como dito por Flávia Piovesan[4], cenas de “destruição e descartabilidade da pessoa humana”, mas, nem por isso os seus idealizadores e realizadores foram sumariamente eliminados como suas vítimas. “O Julgamento de Nuremberg” consegue expressar bem este enfoque que, sem sombra de dúvidas, é o mais importante de toda a história, posto que o ideal de justiça ali suscitado é a expressão mais clara dos direitos humanos.
Noberto Bobbio, citado por Piovesan, leciona que “os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas”[5], isto fica claro quando analisamos a trajetória dos direitos humanos fundamentais e a luta de seus defensores para que hodiernamente pudéssemos gritar aos quatro ventos que somos mais livres e mais felizes que antes. Embora tais direitos nasçam com o ser humano, infelizmente temos que lutar para que se concretizem e se perpetuem.
Todas as atrocidades ocorridas durante o Holocausto, e também reveladas pela obra ora em estudo, demonstram que facilmente o ser humano pode ser influenciado a cometer barbáries em nome de um ideal, de um dogma ou de um mito. Hitler sabia disso e disse “A grandeza de toda poderosa organização incorporando uma ideia neste mundo repousa no fanatismo religioso e na intolerância com a qual fanaticamente se convencem de seus direitos, impondo com intolerância contra todas as outras”.
O julgamento de Nuremberg” demonstra o quão alienados estavam os seguidores de Hitler, quando por vários momentos demonstraram uma fervorosa paixão pelo ideal nazista, mesmo sendo algo tão nefasto. A frieza com a qual alguns relatavam os horrores cometidos é de dar calafrios, e ainda assim, mesmo havendo controvérsias[6], a justiça foi feita como deveria ser.
A obra cinematográfica “O julgamento de Nuremberg” traz uma ótica “americanizada” de se analisar os acontecimentos pós-guerra. Fato que, a princípio, distrai o espectador quanto ao tema da obra, logicamente, o desenrolar do julgamento dos 21 líderes nazistas ocorrido na destruída cidade de Nuremberg. A visão romântica introduzida no roteiro americano ameniza o impacto factual e enevoa a ótica dos que desconhecem toda história. A alternação entre história e estória pode confundir a construção intelectual dos espectadores quanto ao assunto, sendo que melhor seria uma abordagem menos dramática, o que, porém, catalogaria o filme como um documentário, o que não resultaria em lucro, objetivo da indústria cinematográfica. Contudo trata-se de uma obra-prima, que relata com precisão os tensos momentos ocorridos durante o julgamento de Hermann Göring e companhia.
[1] Mein Kampf (Minha Luta) é o título da obra escrita por Adolf Hitler na qual expressa suas opiniões antissemitas entre outras aberrações.
[2] A história nos mostra que foram necessários vários fatores até que fosse declarada a Segunda Guerra Mundial. Não se tratou de uma situação isolada e, sim, de um complexo caos causado não só pelos alemães, mas, também por japoneses e italianos.
[3] “Na guerra eterna a humanidade se torna grande - na paz eterna, a humanidade se arruinaria” (Adolf Hitler).
[4] PIOVESAN, Flavia. Direitos sociais, econômicos e culturais e direitos civis e políticos. Sur. Rev. Int. Direitos Humanos. [online]. 2004, vol.1, n.1 ISSN 1806-6445. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S1806-64452004000100003&script=sci_arttext. Acesso em 31/07/2011.
[5] PIOVESAN, Flavia. Op. Cit.
[6] Há historiadores que afirmam que os enforcamentos dos declarados culpados em Nuremberg foram realizados de forma a causar grande sofrimento aos enforcados, não os matando instantaneamente.